Eis um texto que circula pelo Facebook e que está a fazer furor em Espanha e não só. Apesar de comprido vale a pena ler na íntegra.
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Se percebemos bem - e não é
fácil, porque somos um bocado tontos -, a economia financeira é a
economia real do senhor feudal sobre o servo, do amo sobre o escravo, da
metrópole sobre a colónia, do capitalista manchesteriano sobre o
trabalhador explorado. A economia financeira é o inimigo da classe da
economia real, com a qual brinca como um porco ocidental com corpo de
criança num bordel asiático.
Esse porco filho da puta
pode, por exemplo, fazer com que a tua produção de trigo se valorize ou
desvalorize dois anos antes de sequer ser semeada. Na verdade, pode
comprar-te, sem que tu saibas da operação, uma colheita inexistente e
vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e este a um quinto, e
pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que durante esse
processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se afunde
sem que tu ganhes mais caso suba, apesar de te deixar na merda se
descer.
Se o preço baixar demasiado, talvez não te
compense semear, mas ficarás endividado sem ter o que comer ou beber
para o resto da tua vida e podes até ser preso ou condenado à forca por
isso, dependendo da região geográfica em que estejas - e não há nenhuma
segura. É disso que trata a economia financeira.
Para
exemplificar, estamos a falar da colheita de um indivíduo, mas o que o
porco filho da puta compra geralmente é um país inteiro e ao preço da
chuva, um país com todos os cidadãos dentro, digamos que com gente real
que se levanta realmente às seis da manhã e se deita à meia-noite.
Um
país que, da perspetiva do terrorista financeiro, não é mais do que um
jogo de tabuleiro no qual um conjunto de bonecos Playmobil andam de um
lado para o outro como se movem os peões no Jogo da Glória.
A
primeira operação do terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do
terrorista convencional: o tiro na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o
caráter de pessoa, coisifica-a. Uma vez convertida em coisa, pouco
importa se tem filhos ou pais, se acordou com febre, se está a
divorciar-se ou se não dormiu porque está a preparar-se para uma
competição. Nada disso conta para a economia financeira ou para o
terrorista económico que acaba de pôr o dedo sobre o mapa, sobre um país
- este, por acaso -, e diz "compro" ou "vendo" com a impunidade com que
se joga Monopólio e se compra ou vende propriedades imobiliárias a
fingir.
Quando o terrorista financeiro compra ou vende,
converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões de pessoas
que antes de irem trabalhar deixaram na creche pública - onde estas
ainda existem - os filhos, também eles produto de consumo desse exército
de cabrões protegidos pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos,
desde logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou União Europeia ou,
mais simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser desviados
neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões de
euros que estavam nos nossos cofres.
E não são desviados num
movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo
promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada
zona euro.
Tu e eu, com a nossa febre, os nossos filhos
sem creche ou sem trabalho, o nosso pai doente e sem ajudas, com os
nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias sentimentais, tu e eu já
fomos coisificados por Draghi, por Lagarde, por Merkel, já não temos as
qualidades humanas que nos tornam dignos da empatia dos nossos
semelhantes. Somos simples mercadoria que pode ser expulsa do lar de
idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos algo desprezível,
como esse pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia, está prestes a
dar um tiro na nuca em nome de Deus ou da pátria.
A ti e a
mim, estão a pôr nos carris do comboio uma bomba diária chamada prémio
de risco, por exemplo, ou juros a sete anos, em nome da economia
financeira. Avançamos com ruturas diárias, massacres diários, e há
autores materiais desses atentados e responsáveis intelectuais dessas
ações terroristas que passam impunes entre outras razões porque os
terroristas vão a eleições e até ganham, e porque há atrás deles
importantes grupos mediáticos que legitimam os movimentos especulativos
de que somos vítimas.
A economia financeira, se começamos a
perceber, significa que quem te comprou aquela colheita inexistente era
um cabrão com os documentos certos. Terias tu liberdade para não
vender? De forma alguma. Tê-la-ia comprado ao teu vizinho ou ao vizinho
deste. A atividade principal da economia financeira consiste em alterar o
preço das coisas, crime proibido quando acontece em pequena escala, mas
encorajado pelas autoridades quando os valores são tamanhos que
transbordam dos gráficos.
Aqui se modifica o preço das
nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o problema, ou mais,
enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo. E, por Deus, as
autoridades empenham-se a fundo para proteger esse filho da puta que te
vendeu, recorrendo a um esquema legalmente permitido, um produto
financeiro, ou seja, um objeto irreal no qual tu investiste, na melhor
das hipóteses, toda a poupança real da tua vida. Vendeu fumaça, o grande
porco, apoiado pelas leis do Estado que são as leis da economia
financeira, já que estão ao seu serviço.
Na economia real,
para que uma alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o
tempo necessário para se desenvolver. Depois, há que a colher, claro, e
embalar e distribuir e faturar a 30, 60 ou 90 dias. Uma quantidade
imensa de tempo e de energia para obter uns cêntimos que terás de
dividir com o Estado, através dos impostos, para pagar os serviços
comuns que agora nos são retirados porque a economia financeira tropeçou
e há que tirá-la do buraco. A economia financeira não se contenta com a
mais-valia do capitalismo clássico, precisa também do nosso sangue e
está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a nossa
educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio,
passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do
sequestrado.
Há já quatro anos que nos metem esse cano pelo rabo. E com a cumplicidade dos nossos.
Texto de José Millás (DAQUI)