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sábado, janeiro 07, 2017

PORTUGAL

Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado. 


Miguel Torga

Entardecer by Palaciano

terça-feira, abril 19, 2016

UMA APÓS UMA



Uma após uma, as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva 'spuma
No moreno das praias.

Uma após uma, as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o 'spaço
Do ar entre as nuvens 'scassas.

Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.

Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.
 

Fernando Pessoa


O Mar e as Rochas by Palaciano

quarta-feira, março 25, 2015

SOBRE UM POEMA



Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


Herberto Helder



terça-feira, março 03, 2015

PORQUE O POVO DIZ VERDADES

Porque o povo diz verdades,
Tremem de medo os tiranos,
Pressentindo a derrocada
Da grande prisão sem grades
Onde há já milhares de anos
A razão vive enjaulada.

Vem perto o fim do capricho
Dessa nobreza postiça,
Irmã gémea da preguiça,
Mais asquerosa que o lixo.

Já o escravo se convence
A lutar por sua prol
Já sabe que lhe pertence
No mundo um lugar ao sol.

Do céu não se quer lembrar,
Já não se deixa roubar,
Por medo ao tal satanás,
Já não adora bonecos
Que, se os fazem em canecos,
Nem dão estrume capaz.

Mostra-lhe o saber moderno
Que levou a vida inteira
Preso àquela ratoeira
Que há entre o céu e o inferno.


António Aleixo

By Palaciano

segunda-feira, setembro 01, 2014

GRANDES PATRIMÓNIOS



- Do País da Luz - 

“ A inteligência, a razão e a vontade, 
precisamente impulsionadas, formando um todo homogêneo, 
constituem uma força sem igual. 

Uma inteligência lúcida e uma razão justa 
hão-de produzir uma vontade inabalável; 
e uma vontade inabalável, 
servindo uma inteligência lúcida e uma razão justa, 
consegue tudo que é possível conseguir-se 
na situação em que cada indivíduo se encontre. 

Tem, pois, o homem, necessidade de 
apurar e educar a sua inteligência, 
a sua razão e a sua vontade, 
como quem valoriza o mais rico 
patrimônio, indispensável à Vida. ” 

Eça de Queiroz


Sarapintada by Palaciano

Escondida by Palaciano

domingo, julho 20, 2014

FLOR QUE NÃO DURA

Flor que não dura 
Mais do que a sombra dum momento 
Tua frescura 
Persiste no meu pensamento. 

Não te perdi 
No que sou eu, 
Só nunca mais, ó flor, te vi 
Onde não sou senão a terra e o céu.
 


Fernando Pessoa
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Fotos do Palaciano
By Palaciano

By Palaciano

terça-feira, julho 01, 2014

DONA ABASTANÇA

«A caridade é amor» 
Proclama dona Abastança 
Esposa do comendador 
Senhor da alta finança. 

Família necessitada 
A boa senhora acode 
Pouco a uns a outros nada 
«Dar a todos não se pode.» 

Já se deixa ver 
Que não pode ser 
Quem 
O que tem 
Dá a pedir vem. 

O bem da bolsa lhes sai 
E sai caro fazer o bem 
Ela dá ele subtrai 
Fazem como lhes convém 
Ela aos pobres dá uns cobres 
Ele incansável lá vai 
Com o que tira a quem não tem 
Fazendo mais e mais pobres. 

Já se deixa ver 
Que não pode ser 
Dar 
Sem ter 
E ter sem tirar. 

Todo o que milhões furtou 
Sempre ao bem-fazer foi dado 
Pouco custa a quem roubou 
Dar pouco a quem foi roubado. 

Oh engano sempre novo 
De tão estranha caridade 
Feita com dinheiro do povo 
Ao povo desta cidade.
 

Manuel da Fonseca


quarta-feira, março 26, 2014

CERTAS PALAVRAS

Certas palavras não podem ser ditas 
em qualquer lugar e hora qualquer. 
Estritamente reservadas 
para companheiros de confiança, 
devem ser sacralmente pronunciadas 
em tom muito especial 
lá onde a polícia dos adultos 
não adivinha nem alcança. 

Entretanto são palavras simples: 
definem 
partes do corpo, movimentos, actos 
do viver que só os grandes se permitem 
e a nós é defendido por sentença 
dos séculos. 

E tudo é proibido. Então, falamos. 


Carlos Drummond de Andrade

sábado, dezembro 21, 2013

O SINO

O sino da minha aldeia,
 Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.

 E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
 És para mim como um sonho.
 Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.


Fernando Pessoa

quarta-feira, outubro 23, 2013

Abaixo el-rei Sebastião



É preciso enterrar el-rei Sebastião
é preciso dizer a toda a gente
que o Desejado já não pode vir.
É preciso quebrar na ideia e na canção
a guitarra fantástica e doente
que alguém trouxe de Alcácer Quibir.

Eu digo que está morto.
Deixai em paz el-rei Sebastião
deixai-o no desastre e na loucura.
Sem precisarmos de sair do porto
temos aqui à mão
a terra da aventura.

Vós que trazeis por dentro
de cada gesto
uma cansada humilhação
deixai falar na nossa voz a voz do vento
cantai em tom de grito e de protesto
matai dentro de vós el-rei Sebastião.

Quem vai tocar a rebate
os sinos de Portugal?
Poeta: é tempo de um punhal
por dentro da canção.
Que é preciso bater em quem nos bate
é preciso enterrar el-rei Sebastião.


Manuel Alegre